Reler Jó

Três mil anos antes de Cristo já havia gente se perguntando como entender o mistério do sofrimento humano. Filósofos e escritores tentaram descobrir a relação que há entre o poder absoluto de Deus e a liberdade humana. Lá pelo ano 480 aC, Ésquilo, autor de “Prometeu Acorrentado”, comentou ser inútil lutar contra a força do destino – antes, é melhor resignar-se diante do sofrimento.

Praticamente por essa época, prosperava em Jerusalém a teologia da prosperidade, segundo a qual a felicidade é decorrência da posse de bens materiais. É feliz quem tem família numerosa, grandes rebanhos, vida longa, saúde física e fama. Esses seriam os sinais da “bênção divina”, o prêmio do homem justo, o retrato da pessoa feliz.

De forma pedagógica, num longo processo educativo, Deus foi mostrando a seu povo quanto era pertinente  o desejo que tinham de serem felizes, mas lhe  foi ensinando também que a felicidade está muito além das riquezas materiais. É essa a ideia central do livro de Jó.

“Havia na terra de Us um homem chamado Jó”: assim começa o Livro de Jó. O fato narrado teria acontecido num passado indeterminado, em um país distante. Jó era a personificação do homem feliz: além de íntegro, temia a Deus e mantinha-se afastado do mal. Pai de dez filhos, era dono de sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas jumentas e servos em grande quantidade. “Era, pois, o mais rico entre todos os habitantes do Oriente” (Jó 1,3).

Tão perfeito era Jó que até Deus se gloriava dele: “Reparaste no meu servo Jó?”, perguntou o Senhor a Satanás, quando este voltou de um passeio pela terra. “Na terra, não há outro igual: é um homem íntegro e reto, teme a Deus e afasta-se do mal” (1,8). Foi a oportunidade que Satanás esperava para lhe dizer que não era para  se maravilhar com a retidão de Jó. Ele era assim porque sempre foi muito protegido. “Estende, porém, um pouco a tua mão e toca em todos os seus bens, para ver se não te lançará maldições na cara!” (1,11).

O Senhor aceitou o desafio de Satanás. Passaram, então, a cair sobre Jó, como em cadeia, todas as desgraças possíveis e imaginárias: perdeu seus bens e os filhos; mesmo assim, manteve-se firme: “O Senhor deu, o Senhor tirou… Seja bendito o nome do Senhor!” (1,21). Depois, seu corpo ficou tão cheio de chagas que até seus amigos, vindos de longe, testemunharam quanto era grande a sua dor (cf. 2,13).

A um dado momento, Jó não se conteve e censurou Deus pela vida que lhe deu, chegando a amaldiçoar o dia de seu nascimento (3,1). Em resposta, o Senhor repassou diante de seus olhos as obras da criação e pediu-lhe que explicasse os segredos que elas continham. Esses capítulos do Livro de Jó (38 a 41) estão entre as mais belas páginas da literatura universal.

Diante dessa manifestação do Senhor, Jó reconheceu seus limites e disse ter falado sem nada entender das maravilhas que ultrapassam seu conhecimento (cap. 42). Tendo se arrependido de seu orgulho, obteve do Senhor a restituição da saúde e o dobro dos bens. E, mais importante: várias vezes o Senhor o chamou de “Meu servo” – servo fiel, que morreu cercado pelas  bênçãos de Deus.

O livro de Jó não tem a última nem a única palavra sobre  sofrimento nas sagradas Escrituras. O profeta Isaías, por exemplo, descreve o valor redentor do sofrimento do justo (capítulos 49-53). Já o Evangelho nos oferece  as mais profundas lições sobre ele. A história de Jó nos mostra, particularmente, que Deus respeita a liberdade humana; respeita-a tanto que ele, o Senhor, não se vê obrigado a dar uma resposta imediata para o problema do mal.

O livro de Jó é um grito de esperança nascido do sofrimento. A resposta completa a esse grito será dada por Jesus Cristo que, de rico que era, tornou-se pobre por causa de nós, para que pudéssemos nos tornar ricos por sua pobreza (cf. 2Cor 8,9). Nossa maior riqueza, pois, consiste em sermos filhos de Deus, irmãos de Jesus Cristo. E essa riqueza, fonte de nossa alegria, ninguém tem condições de roubar de nós.

Dom Murilo S.R. Krieger, scj

Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil